Comissão de Memória e Verdade

Resgatar a Verdade e Preservar a Memória para que não se repita!

É com muita alegria, munidos de um senso responsabilidade histórica e de compromisso com a verdade, que o Centro Acadêmico Guimarães Rosa, trabalhando juntamente com a Representação Discente, vem a público informar a criação de uma Comissão de Memória e Verdade, com a finalidade de realizar uma curadoria a respeito dos diversos documentos gerados e fatos ocorridos durante aquele que foi o momento mais grave ja vivido na história do nosso jovem Instituto: o Golpe Institucional nas eleições para a diretoria do IRI em 2017.

Os trabalhos terão como objetivo o resgate, organização e publicização sistemática dos mais diversos documentos e acontecimentos que envolvem o Golpe de 2017, e que, muitas vezes, encontram-se dispersos ou descontextualizados nas redes sociais, nos sites do IRI e em outros locais. Acreditamos que esse processo é fundamental para preservar viva na memória do Instituto a seríssima ruptura democrática pela qual passamos, e que segue tendo consequências na vida política e acadêmica do IRI. Além disso, cremos que os trabalhos da Comissão terão o importantíssimo papel de sempre manter os estudantes alertas sobre os perigos que rondam nossas instituições, tanto a nível local quanto nacional: de maneira que não permitamos que se repitam, nas eleições do ano que vem para a diretoria do IRI, a mesma violência política e desvio de finalidade que ocorreu em 2017.

Convidamos a todos que tenham compromisso com o resgate da história recente do IRI, e com a manutenção da memória do Golpe e de seus desdobramentos, a participar deste processo, de ingressantes a ex-alunos. A Comissão, por seu caráter delicado, trabalhará de modo sigiloso. Para participar, basta chamar qualquer membro da Representação Discente ou do Centro Acadêmico

Afinal, o que é um golpe institucional?

Não é de hoje que existe a narrativa de que, no contexto das eleições para a diretoria do IRI em 2017, não teria havido golpe institucional algum, por conta do suposto enquadramento normativo do processo eleitoral. Segundo essa mesma narrativa, não havia nada que impedisse que as duas chapas de professores titulares se inscrevessem para concorrer ao pleito — não permitindo, assim, a participação de uma terceira chapa: a "Por um IRI Multidisciplinar", composta por professores associados.

Para derrubar esse mito, é preciso debater sobre o contexto político em que o golpe de 2017 se deu; mesmo contexto em que golpes institucionais voltam a entrar na moda não só no Brasil, mas na América Latina como um todo.

A democracia liberal, enquanto regime político-institucional, não se resume apenas ao respeito às normas escritas e delineadas. É sabido que parte das interpretações sobre a legitimidade de determinada lei ou decisão institucional passa, muitas vezes, por uma etapa deliberativa ou de verificação. Assim, se faz imprescindível que, para além do cumprimento das normas formalmente escritas, seja assumido também o compromisso de aplicá-las não somente a partir de uma interpretação literal, mas principalmente a partir de suas finalidades políticas e sociais.

A declarada interferência de Bolsonaro no comando da Polícia Federal, por exemplo, para todos os efeitos, está prevista em lei; de maneira análoga, o presidente também possui, por exemplo, a atribuição de criar quantas vagas no Supremo Tribunal Federal achar necessário, ainda que a manutenção da saúde das instituições dependa de que ele não o faça. O mesmo se aplica às recentes nomeações sistemáticas de interventores, não indicados em listas tríplices, para Institutos e Universidades federais, e para a PGR, um importante cargo no sistema de freios e contrapesos. Esse tipo de desrespeito ao "compromisso institucional" potencialmente abre espaço para a instrumentalização da literalidade da lei em favorecimento de interesses alheios ao processo democrático — os quais são, muitas vezes, interesses privados.

Entender como se dão as quebras de regimes democráticos por vias institucionais é de suma importância para analisar o golpe de 2017. Autores como Néstor García Canclini, titular da Cátedra Olavo Setubal, atentam para a nebulosidade da fronteira entre a formalidade e a informalidade na gestão pública em países com instituições democráticas historicamente enfraquecidas, como os latino-americanos (Culturas Híbridas, 1997). Segundo ele, isso se dá sobretudo na figura do “favor”, em que informalmente interesses privados se misturam com interesses públicos.

Em 2017, o Brasil, e a América Latina como um todo, passavam por um período em que a permeabilidade institucional para interesses privados voltara a servir de “laboratório” para aventuras golpistas (https://diplomatique.org.br/america-latina-golpes-light-e-desestabilizacao-moderna/). Tais aventuras eram marcadas pela atuação de determinadas figuras públicas e órgãos midiáticos, relacionados aos interesses dos EUA, na criação de um clima de polarização e despolitização, em que questões políticas complexas eram simplificadas em narrativas superficiais, que desconsideravam todas as articulações de interesses e processos deliberativos.

Além do golpe parlamentar sofrido por Dilma Rousseff um ano antes, Fernando Lugo, ex-presidente paraguaio, havia sido deposto em 2012 por meio de um "impeachment relâmpago", sob a acusação de incitar a violência em protestos de camponeses. Em Honduras, o ex-presidente Manuel Zelaya também foi destituído em 2009, com aval das forças militares, por acusação de pleitear uma suposta reeleição ilegal por meio de uma consulta pública acerca de uma constituinte.

Alguns anos depois dessa onda de "golpes light" no Brasil e na América Latina, podemos ver claramente os resultados desse ciclo. Depois de anos esticando as instituições até o momento de efetiva ruptura do suposto rito democrático — um golpe —, hoje presenciamos um momento ainda mais desafiador, vide o golpe militar (disfarçado de "renúncia voluntária") na Bolívia em 2019.

No caso das eleições para a diretoria do IRI em 2017, o golpe institucional é denunciado a partir da compreensão de que a candidatura da professora Janina Onuki foi usada para bloquear a possibilidade de concorrência eleitoral. A regra que exige que haja duas chapas de professores titulares em concorrência (em caso contrário, o processo é aberto a chapas compostas por professores associados) tem a finalidade de garantir uma eleição com diferenças de projetos, de modo que haja, de fato, uma escolha a respeito dos rumos da unidade. Dessa forma, utilizar essa regra para bloquear uma candidatura — impedindo a divergência de projetos e, portanto, também a concorrência livre e democrática — é desviar a finalidade para a qual a norma existe.

Para além disso, ressaltamos que estava no poder legal das duas chapas formalmente inscritas a permissão para a concorrência de todas as três chapas, sem que nenhuma tivesse que abandonar permanentemente a disputa do pleito. Não obstante, tais duas chapas optaram deliberadamente por bloquear a terceira candidatura — optando também, dessa forma, pela solução antidemocrática de limitar a possibilidade de escolha da comunidade do IRI, situação esta que é agravada pelo fato de que a chapa que foi impedida de concorrer, a “Por um IRI Multidisciplinar”, era a chapa que contava com o apoio massivo das três categorias do Instituto.

Por isso, por um compromisso com a verdadeira democracia na “micro” dimensão da Universidade Pública, sobretudo em um cenário macro de evidente ascenço autoritário, consideramos que a instrumentalização das instituições políticas por aqueles que, no papel de diretores e sobretudo professores, deveriam prezar minimamente pelo que é ético e democrático é algo que a memória do Instituto não pode esquecer.

Ética nas eleições para a Diretoria: entre o legal e o legítimo

Muitos dos que negam a existência de um golpe nas eleições para a Diretoria do IRI em 2017 justificam sua posição utilizando argumentos estritamente legalistas de forma abstrata. Para estes, o modo como se deu o processo de inscrição de chapa no IRI, por estar dentro das normas vigentes da USP, deve ser considerado legítimo.

Gostaríamos, no entanto, de trazer mais alguns elementos para esta discussão. Tudo o que é legal é legítimo? Tudo o que é legítimo é ético? Tudo o que é legal é ético? Ou ainda: se uma norma não é ética, ela continua sendo legal?

O debate sobre o que é ético não deve ser realizado apenas em momentos de eleições. Ética significa refletir sobre nossas escolhas cotidianas em um mundo que nós não escolhemos. Ética significa responsabilidade e reflexão. Não é um assunto, portanto, exclusivo da academia, mas sim algo que está inerentemente ligado à concretude de nossas ações. Não refletir sobre nossas escolhas significa abdicar da nossa responsabilidade sobre elas. Deste modo, quem se recusa a refletir sobre suas escolhas e a responder sobre elas deve ser considerado antiético.

A norma sobre eleições na USP, assim como qualquer outra norma, é um comando geral e abstrato, que se desatualiza com o passar do tempo. Quando esta norma é aplicada em um instituto do tamanho do IRI, que possui apenas três professores titulares, sem nenhuma reflexão ética sobre o papel das eleições para a Diretoria de uma instituição pública, isto significa apenas a perpetuação das mesmas figuras no poder. Se a finalidade da norma é garantir a concorrência de projetos, sua aplicação da maneira que ocorreu significa um desvio de finalidade da norma para fins privados, o que é profundamente antiético e caracteriza este processo como um golpe contra o interesse público.

A tendência de hiperespecialização da produção de conhecimento tem como uma de suas consequências a fragmentação de responsabilidades. Ora, não podemos nos esquecer que qualquer docente do IRI, seja de Ciência Política, de Economia ou de Direito, para além de especialista em sua área de conhecimento é também professor ou professora de uma universidade pública. E a universidade pública, constituída sobre o tripé de ensino, pesquisa e extensão, possui uma função social. Qualquer pessoa que atua na ciência em uma universidade pública deve estar preparada para justificar publicamente seus atos, pois o que rege a universidade pública é o interesse público, e não o privado.

É inaceitável que alguém se contente em afirmar a legalidade de um procedimento. É nosso dever travar um debate ético sobre a aplicação de normas. Os piores regimes de exceção da história da humanidade foram baseados em leis e as pessoas que cometeram atrocidades diziam estar apenas cumprindo a lei. A escravização de seres humanos, por exemplo, já foi prevista em lei. Portanto, o que não é ético pode não ser legal, mesmo estando previsto em lei.

No caso das regras sobre eleições para diretoria de unidades na USP, assim como toda norma, sua força vem de sua finalidade, que certamente não é beneficiar pessoas. A ausência de um debate ético sobre as normas que regem a Universidade contribui para a manutenção de uma lógica em que as eleições e os próprios concursos para professores titulares se tornam uma obsessão para galgar espaços de poder. O debate ético, portanto, é imprescindível para a defesa da democracia na Universidade e de um projeto de educação pública, gratuita e comprometida com a transformação social.

A partir dessas considerações, gostaríamos de colocar a insuficiência do parecer da Comissão de Ética da USP a respeito das eleições. Como descrito pelo Professor Pedro Dallari em resposta à Comissão (https://drive.google.com/file/d/19D00jjcENlamiSV13bFolsFXvxLvLPzd), é um parecer que se limita a analisar os aspectos puramente legalistas do processo, chegando à conclusão de que não houve desvios de conduta sem abordar o debate feito neste texto, o qual deveria ser o foco de uma comissão destinada a analisar questões éticas.